Na lembrança de muitos, aquele circunspecto senhor, o Ary Barroso, não condiz com o garoto peralta e arteiro que foi. Em Ubá, onde nasceu em 1903, perdeu os pais muito cedo, e foi criado pela tia e pela avó, que desejavam para o menino a mais santa das carreiras: a de padre. Ele até aprendeu a ajudar a missa, mas uma noite matou suas pretensões. Amarrou uma corda do badalo do sino à cauda de um cavalo que pastava próximo à igreja, e todos ouviram as badaladas noturnas quando o cavalo espantava os mosquitos com o rabo. Era só uma de suas brincadeiras. Também estudar piano não era o seu fraco, mas as aulas impostas por Tia Ritinha foram o ponto de partida em sua carreira. Cedo começou a trabalhar para ajudar em casa. Seu primeiro trabalho remunerado, com doze anos, consistiu em tocar piano fazendo fundo musical no cinema da cidade, e foi com certa dificuldade que terminou os estudos. Aos 17 anos recebeu uma pequena herança de um tio e quase se casou, não fosse a oposição da família. Cedeu à pressão familiar mas deixou Ubá e veio para o Rio em 1921. Entrou para a Faculdade de Direito, gastou a herança em restaurantes de luxo, roupas elegantes e... voltou a fazer fundo musical nos filmes de cinema mudo. Interrompendo seu curso de direito várias vezes devido aos problemas financeiros, só se formou em 1930, tendo Mário Reis por colega de turma. Em 1923 o pianista Ary Barroso já chamava atenção por suas improvisações e logo passou a integrar algumas orquestras. Inconstante, saltando de uma orquestra para outra, novamente sem emprego, passou a tocar em bailes até ser descoberto pela orquestra do Maestro Spina, em 1928. Fez uma temporada de 8 meses em Santos e Poços de Caldas, período em que, sobrando-lhe tempo, se lançou à composição musical. A encomenda de 6 foxtrotes (o ritmo de sucesso da época) por Luiz Peixoto para a peça musical "Laranja da China", tornou Ary um bem sucedido compositor e deu início a uma seqüência de gravações com Mário Reis, Silvio Caldas, e parcerias com Lamartine Babo. Conta-se que Lamartine Babo escutou "Na Grota Funda", melodia de Ary Barroso com letra de J.Carlos, numa revista musical. Não gostou da letra, e sem mesmo pedir licença ao autor, apresentou a composição de Ary pela Radio Educadora com sua própria letra, interpretada pelo Bando de Tangará, assim inaugurando sua parceria em "O Rancho Fundo". J.Carlos não aceitou o fato, pediu explicações, e a desavença com Ary Barroso foi longa. Outra letra modificada tornou-se a conhecida "Maria", com a ajuda de Luis Peixoto. Participando de um concurso de músicas carnavalescas em 1929 com a marcha "Dá Nela", ganhou o prêmio do primeiro lugar, que lhe permitiu pagar as despesas com o diploma de Bacharel em Direito e se casar. Formado, Ary recusou a posição de Juiz Municipal de Nova Rezende por entender sua vida estar ligada definitivamente à música. Ingressando na Rádio Phillips, em 1932, Ary teve a oportunidade de desenvolver suas habilidades como locutor, humorista, locutor esportivo e animador. Inovou apresentando programas de calouros, onde as gafes dos mesmos eram gostosamente exploradas. Exigia que os calouros soubessem os nomes dos autores das músicas, criticava interpretações de ritmos estrangeiros, introduziu o famoso gongo para demonstrar sua reprovação. Essas atitudes caracterizaram o apresentador por toda a sua vida. Ary Barroso foi um dos mais férteis criadores musicais e sua produção de 1932 a 1934 relaciona inúmeros sucessos até hoje na mídia: Maria, Segura esta mulher, No Racho Fundo, Camisa Amarela, No tabuleiro da baiana, Na Baixa do Sapateiro, Os quindins de Iaiá, Boneca de Piche, Como "vaes" você, Quando eu penso na Bahia, Terra Sêca, etc. Vários carnavais são lembrados em seus sucessos. Em 1939 surgiu a música que, usada por Walt Disney como trilha sonora do filme "Alô amigo", o consagrou definitiva e mundialmente - Aquarela do Brasil. Ary musicou vários filmes em Hollywod, mas não se deixou seduzir pelo glamour americano. Seu lado polêmico foi exacerbado por suas duas grandes paixões: a política e o futebol. Como vereador pela UDN, em 1946, enfrentou seu oponente Carlos Lacerda, também vereador, na luta para que fosse construído o Estádio do Maracanã em seu local atual. Incentivou pesquisas de opinião, deflagrou campanhas, e venceu. Ary Barroso elevou a música brasileira em todos os sentidos, criou a União Brasileira de Compositores em 1942, e aderiu à SBACEM surgida em 1946, entidade para defesa de direitos autorais, sendo aclamado como Presidente de Honra e Conselheiro Perpétuo da mesma. Defendia nosso samba com toda a garra, e lutou para que seu samba-canção Risque, de 1952, não fosse gravado em ritmo de bolero. Altamente crítico, não media palavras, mas tinha o dom de reconhecer os valores artísticos. Numerosos cantores iniciaram carreira em seu programa e muitas histórias têm para contar. Ranzinza, Ary Barroso se impôs com todo seu gênio briguento, mas nos últimos anos de sua vida recolheu-se, insatisfeito. Recusava-se a entrar no jogo das rádios pagando para divulgar suas músicas. Afinal, jamais precisou desse recurso. Morreu em pleno carnaval, em 1964. Por um momento o samba parou, mas Ary continuou vivo e eterno na Aquarela do Brasil. |
CANTE ESSA CANÇÃO
(Na voz de Jamelão)
Pois não suporto o inferno
Do nosso amor fracassado.
Deixe que eu siga novos caminhos
Em busca de outros carinhos,
Matemos nosso passado.
A saudade apertar,
Não se perturbe,
Afogue a saudade
Nos copos de um bar...
Creia, toda quimera se esfuma
Como a brancura da espuma
Que se desmancha na areia.
NO RANCHO FUNDO
(Na voz de Elizeth Cardoso)
Bem pra lá do fim do mundo,
Onde a dor e a saudade
Contam coisas da cidade...
No rancho fundo,
De olhar triste e profundo,
Um moreno canta as "mágua"
Tendo os olhos rasos d'água.
Que de tarde no sereno
Espera a lua no terreiro
Tendo o cigarro por companheiro.
Sem um aceno,
Ele pega na viola
E a lua por esmola
Vem pro quintal desse moreno!
Bem pra lá do fim do mundo,
Nunca mais houve alegria
Nem de noite nem de dia!
Os arvoredos
Já não contam mais segredos
E a última palmeira
Já morreu na cordilheira!
Internaram-se nos ninhos,
De tão triste essa tristeza
Enche de trevas a natureza!
Tudo porque
Só por causa do moreno,
Que era grande hoje é pequeno
Para uma casa de sapé.
Da tristeza lá na serra,
Mandaria lá pra cima
Todo amor que há na terra,
Porque o moreno
Vive louco de saudade,
Só por causa do veneno
Das mulheres da cidade.
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